sexta-feira, 8 de junho de 2007

Como um pinto no lixo

Decidi passar o feriado vendo alguns filmes que perdi no cinema, até porque morar em Florianópolis não é fácil, muita coisa não chega às telas dos 21 cinemas que temos por aqui. A programação focaliza, quase sempre, filmes blockbusters hollywoodianos (nada contra as produções de Homem Aranha, Piratas do Caribe X, etc., mas isso cansa). O que me salva são as videotecas.
Peguei o documentário Estamira, de Marcos Prado. Com seu olhar atento de fotógrafo, ele focalizou uma mulher no seus 63 anos, mãe de três filhos, que internou a mãe num hospício (ela também sofria de esquizofrenia), foi estuprada e vendida pelo avô como prostituta e depois acolhida por um homem que a abandonou porque não entendia sua "loucura". Uma história resumida de Estamira, e não é pouca coisa.
Talvez por isso, ela tenha escolhido o lixão do Gramacho, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, para passar seu tempo e conseguir um pouco de paz e conforto. Ironicamente, é ali que se sente feliz e gosta de ficar, no meio dos urubus e moscas, disputando com eles os vidros de conservas vencidos e que darão um molho de macarrão. Às vezes, fica até melhor que em restaurantes....para quem sabe preparar, né?" Fala, confiante naquilo que sabe fazer bem, que é cozinhar.
O lixão é uma boa metáfora para os dias que vivemos hoje neste País. Mas é a lógica de Estamira, sua lucidez filosófica que espanta. Fala com raiva de um Deus que não existe mais para ela: "Deus estuprador, trocadilho!" Talvez por ele tê-la abandonado de vez. Com um discurso muitas vezes coerente, Estamira blasfema quando vê um dos filhos lendo a Bíblia ou briga com um neto ao indagar o que ela tem contra Deus.
As frases soltas fazem sentido: "Sou louca, doida, maluca, mas lúcida, consciente e ciente, com cometas na minha cabeça" ao se referir às vozes e ruídos que ouve dentro dela. Fala de reciclagem, de desperdício ("às vezes, é só resto, mas também vem descuido...Economizar é maravilhoso, pois quem economiza tem..."), de comunismo ("a igualdade é o comunismo") e de perturbação, ao se referir à própria doença ("perturbação é perturbação, não é deficiência. Qualquer um pode ficar perturbado"). Tudo tem uma certa lógica nas palavras de Estamira, quando ela fala que há lucidez e ilucidez, ou quando diz que os médicos que dão a ela caixas e caixas de Diazepan são "copiadores apenas, e não médicos", porque a estão dopando. "Se sou louca naturalmente, com o tal Diazepan eu fico mais louca ainda".

Marcos Prado teve sorte de encontrar esse rico personagem no meio do lixo e fazer de Estamira uma fonte de reveladoras verdades. Verdades que nós não estamos acostumados a encarar sem ficarmos perturbados. Talvez também precisemos de um pouco de Diazepan.
http://www.estamira.com.br/

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